Tradução: The phantom woman

A mulher fantasma

por autor anônimo (conto de fantasma do século XIX)

Tradutora: Miriam Marques Machado Waltrick

Ele ficara absolutamente fascinado por ela desde a primeira vez que a viu. De onde a observava, foi possível notar que não era jovem nem bonita. No entanto, a aura de mistério que a envolvia, sem dúvida explicava o encantamento, pois era justamente esse ar distante o que a tornava tão atraente, a despeito da aparência. O rosto dela na janela, sempre ao pôr do sol. Os olhos melancólicos, contemplando o mundo lá fora através das vidraças empoeiradas, hipnotizaram o advogado. Ele a via todos os dias sob a meia luz do crepúsculo. O fervor chegou a tal ponto, que passou a viver os dias à espera do entardecer e, com isso, da oportunidade de poder admirar a desconhecida novamente.

Ela estava sempre sentada em frente à mesma janela, no andar térreo, sem fazer nada. Se ela olhava mais adiante, o apaixonado advogado logo assumia que o olhar era dirigido a ele. Em uma ocasião, ele até mesmo pensou ter vislumbrado os contornos de um sorriso amigável nos lábios dela. Os olhares sempre se cruzavam, e ambos expressavam um desejo mudo de se conhecerem. Esse idílio durou cerca de dois meses.

Gilbert Dent afirmou a si mesmo que nada nessa vida pode permanecer estagnado, e se forçou a pensar em uma maneira respeitosa de se apresentar a sua adorada.

Ele mal havia acabado de tomar a decisão, quando sofreu um choque, dado que naquela mesma tarde ela não estava em frente à janela.

Na manhã seguinte, ele decidiu passar pela Wood Lane a caminho do escritório. Ele sempre ia de trem, mas não se sentiu nem um pouco inclinado a passar mais um dia sem vê-la. Seu coração começou a bater como o de uma colegial à medida que se aproximava de casa.

Na hipótese de vê-la na janela, estava disposto a reunir toda a coragem que dispunha e ir ter com ela. Estava até mesmo preparado para abrir-se completamente e confessar que ela havia se tornado, inexplicavelmente, o mundo todo para ele. Ele não viu nada de errado em levar o plano adiante. Afinal, a possibilidade de ela ser uma mulher casada ou de ter qualquer outro tipo de laço familiar, simplesmente nunca lhe ocorrera.

No entanto, ela não estava na janela. Não bastasse, um silêncio sinistro pairava no ar. O lugar todo passava a impressão de estar morto.

Era uma manhã muito quente no final de agosto. Ele olhou por um longo tempo, mas nenhum rosto apareceu e não havia o mínimo sinal de movimento na casa.

Ele acabou desistindo e seguiu seu caminho para o trabalho. Andava como um homem que tivesse levado uma pancada forte na cabeça e ainda via estrelas. Naquela tarde, ele saiu do escritório mais cedo e, em menos de uma hora, estava em frente ao portão novamente. A janela ainda estava vazia. Ele abriu o portão, que estava preso por uma única dobradiça, e caminhou até a porta. Eram apenas cinco passos até a entrada da casa. Ao chegar em frente à porta, virou-se bruscamente e seguiu direto para a janela. Mas de forma repentina, o simples pensamento de olhar através dos pequenos painéis da vidraça causou-lhe um pavor doentio, irracional.

Quando finalmente tomou coragem, notou que havia uma pequena mesa redonda situada logo abaixo da janela. Pelo aspecto, deduziu ser uma daquelas mesas de costura, que contava com vários pequenos compartimentos, e uma tampa no meio que se fechava sobre um fundo falso, onde os materiais de costura eram guardados. Lembrou-se que sua mãe tivera uma dessas, mas isso foi há trinta anos.

Uma mão pequena e delicada agarrava-se à borda da mesa. Gilbert Dent correu os olhos desta pálida mão de pulsos finos para os ombros cobertos por um corpete de tecido grosseiro e, daí, para uma garganta com a pele enrugada, o pescoço totalmente exposto, inclinado para trás.

Então, esse era o fim, antes do começo. Ele a viu. Ela estava morta. No chão, jazia o corpo contorcido. O rosto voltado para o teto exibia uma expressão de completo terror. Os dedos rígidos agarrados em desespero na beirada da mesa de costura.

Mal se sustentando sobre as pernas, ele percorreu o caminho de volta ao portão que dava acesso à rua.

Custou-lhe perceber a cena hedionda que acabara de presenciar. A influência exercida pela casa decadente ainda atuava sobre ele, nada parecia real. Já havia anoitecido quando ele decidiu se afastar do portão e seguir em direção à delegacia de polícia mais próxima. Que ela estava morta – essa mulher cujo nome ele desconhecia, embora o tivesse fascinado de forma tão absoluta – ele tinha certeza. Um único olhar para aquele rosto e qualquer um deduziria o mesmo. Que ela fora assassinada, ele mais do que suspeitava. Ele não vira sangue por perto e não havia qualquer marca no longo e desnudo pescoço. Ainda assim, a única palavra que lhe ocorreu foi “assassinato”.

Ele retornou mais tarde na companhia de um policial.

Eles invadiram a casa e entraram na sala que, àquela hora, já estava mergulhada na mais completa escuridão. Dent, com os dedos trêmulos, acendeu um fósforo. As paredes mais próximas foram iluminadas por um breve momento, antes que ele deixasse o palito cair no chão empoeirado.

O policial, então, consegue acender sua lanterna e imediatamente a aponta em direção à janela. Ele não tinha motivos para vacilar, posto que estava ansioso para investigar a grave denúncia. O desejo de ir à fundo fora aguçado pelo seu senso de responsabilidade profissional. Além do mais, esse prometia ser um mistério bastante intrigante.

O policial voltou a lanterna totalmente na direção da janela e soltou um grunhido estranho e sufocado, uma mistura de raiva e apreensão. Em seguida, foi até Gilbert Dent, que estava parado no meio da sala com as mãos cobrindo os olhos, segurou o ombro dele e o sacudiu de maneira nada gentil.

– Não tem ninguém aqui! – exclamou ele.

Dent olhou desesperado para o recesso da janela. Estava vazio, exceto pela mesa de costura. Não havia sinal da mulher.

Eles revistaram a casa e inspecionaram minuciosamente o jardim. Nada encontraram de anormal. Cada recanto da velha casa apenas ecoava a mesma história triste de deserção, de morte, de longos anos de abandono. Mas eles não encontraram qualquer vestígio da presença de uma mulher.

– Esta casa, – disse o policial, olhando com certa desconfiança para o advogado – está vazia há mais tempo do que sou capaz de lembrar. Ninguém aceitaria morar aqui. Fala-se sobre um crime que foi cometido neste local há muitos anos. Mas não tenho qualquer informação sobre o ocorrido. Tudo o que sei é que o proprietário não consegue se livrar dela.

A probabilidade de Dent ter absorvido uma única palavra dita pelo policial era mínima. Estava atordoado demais para conseguir fazer qualquer coisa, além de arrastar-se para casa quando foi autorizado a ir. Entrou de maneira furtiva em sua própria casa e fechou a porta utilizando a trava de segurança. Temia até mesmo a própria sombra. Ele não dormiu aquela noite.

Quanto ao mistério da mulher, o assunto foi deixado de lado, e o caso, oficialmente encerrado. Na delegacia não se deu muita importância, e os policiais limitaram-se a fazer alguns gracejos. Na opinião deles, o advogado estivera bebendo, e a mulher morta na sala vazia não passara de uma aberração criada por sua mente entorpecida pelo álcool.

* * * * *

Cerca de uma semana depois, Dent foi visitar seu irmão, Ned, único parente próximo que ele tinha. Ele era médico e, talvez, conseguisse ser um pouco mais pragmático do que Gilbert. Em todo caso, quando este contou a história da casa e da mulher, o irmão atribuiu o caso a algum tipo de problema no fígado.

– Você está sobrecarregado – disse o irmão mais velho ao observar o tom amarelado no rosto do mais novo. – Uma experiência dessa natureza não é incomum. Você já não ouviu falar de pessoas que têm seus próprios “fantasmas de estimação”?

– Mas esta era uma mulher real! – argumentou ele. – Eu… eu, bem, estava apaixonado e, se pudesse, a teria pedido em casamento.

Ned lançou-lhe um olhar penetrante, sagaz.

– Vamos à Brighton amanhã – declarou o médico em um tom tranquilo, mas que não admitiria recusa. – Quanto ao seu trabalho, deve deixar tudo de lado. Você está completamente esgotado. Deveria ter buscado ajuda muito antes de ter chegado a esse ponto.

Os dois foram para Brighton. Tudo levava a crer que Ned estava mesmo certo, e que a mulher na janela não teria passado de uma criação de sua mente devido ao esgotamento nervoso. Pelo menos assim pareceu por quase três semanas, quando algo viria a mudar tudo.

Foi durante o crepúsculo, – ela sempre fizera parte desse momento – que Gilbert Dent a viu novamente. A mulher que ele havia encontrado morta.

Os dois irmãos caminhavam ao longo das falésias.

O vento soprava em seus rostos, e para além do penhasco, o mar ribombava. Ned havia acabado de dizer que estava na hora de voltarem ao hotel para o jantar, quando Gilbert, com um grito, saiu do caminho que trilhavam e avançou rapidamente em direção à borda plana e gramada do penhasco. O movimento foi tão repentino que seu irmão mal consegue ter tempo de detê-lo. Os dois pelejaram à beira do penhasco, e por pouco não perderam o equilíbrio. Gilbert, tomado de um súbito frenesi, parecia decidido a seguir adiante. Mas o irmão, por fim, conseguiu arrastá-lo para trás, e os dois rolaram juntos até as proximidades do denso relvado.

A essa altura, Gilbert abre os olhos e tenta se pôr de pé.

– Sente-se melhor? – pergunta o irmão, em uma voz animada, estendendo-lhe a mão. – Estranho! O mar tem esse efeito sobre algumas pessoas. Não pensei que você fosse uma delas.

– Que efeito?

– O de provocar vertigem, meu caro.

– Ned, – disse o outro, em um tom de voz grave – eu a vi. Não vale a pena tentar explicar coisa alguma. Estava muito inclinado a acreditar que você estava certo. Que a mulher na janela não passava de uma fantasia, e que me apaixonara por uma criação da minha própria mente. No entanto, eu a vi novamente esta noite. Você mesmo deve tê-la visto, pois ela estava a poucos metros de você. Por que não tentou salvá-la? Essa omissão em nada difere de um assassinato. Eu fiz o que estava ao meu alcance.

– Certamente que sim, e quase sucedeu na tentativa de matar a ambos, – retrucou Ned, em tom severo.

Gilbert lançou-lhe um olhar desvairado.

Depois do almoço, Ned convenceu o irmão a descansar. Assim que Gilbert adormeceu, ele saiu.

De volta ao hotel, Ned foi recebido por um garçom que o informou sobre a saída de Gilbert, cerca de quinze minutos após a saída dele próprio.

Temeu o pior assim que ouviu isso. No entanto, como é habitual nesses casos, ele não tinha uma ideia muita clara acerca do que poderia ser o pior. A única certeza que tinha era a de que deveria agir sem demora. No entanto, a menção ao horário o fez lembrar que o próximo trem estava marcado para chegar em apenas uma hora, e este era lento.

Já estava anoitecendo quando Ned chegou ao seu destino. Ele tinha certeza de que Gilbert iria para lá. Começando o percurso a partir de uma das extremidades da rua, caminhou lentamente, examinando cada casa. Não haveria dificuldade em reconhecer a que estava procurando, posto que Gilbert a descrevera em detalhes mais de uma vez.

Ele finalmente parou diante do portão com a dobradiça quebrada. Através da escuridão, conseguiu entrever a desgastada fachada de estuque da casa e o jardim há muito abandonado.

Ele desceu um lance de escadas até a porta dos fundos. Encontrando-a aberta, entrou em uma passagem revestida de pedras no andar inferior da residência. Queria evitar, a todo o custo, a porta de entrada principal. Mal admitia para si próprio que o medo foi o verdadeiro motivo que o levou a agir com tal cautela. E que, igualmente, precisaria reunir coragem para subir o longo lance da escada de pedra, que levava dos aposentos dos criados ao andar superior. No entanto, ele se recompôs e subiu os degraus.

O lugar estava mergulhado na mais completa escuridão. Ned ouviu algo correndo pelo assoalho. Sob seus pés, sentiu a sujeira e o pó acumulados devido aos longos anos de abandono. Ele riscou um fósforo, exatamente como Gilbert havia feito, e olhou primeiramente para o recesso próximo à janela. O fósforo iluminou a sala por um momento, permitindo-lhe averiguar o ambiente à sua volta. Na parede, as listras do extravagante papel que a revestia moviam-se de maneira quase imperceptível, como tentáculos de um monstro marinho. Ele viu uma criatura, que parecia ser um rato, cruzar o cômodo em uma fuga apressada, da janela até a grande lareira de mármore branco.

Quem dera ele não tivesse visto nada além disso.

Ned viu em detalhes tudo o que a luz do primeiro fósforo lhe permitiu. Primeiro, o irmão deitado no chão e, uma terrível coincidência, a mão dele estava agarrada à borda da mesa, como a dela. A outra, estava cerrada e apoiada sobre o peito. O rosto expressava uma profunda agonia.

O rosto de um cadáver, claro. Este foi o fim do caso. Gilbert jazia morto junto à janela onde a mulher se sentava todos os dias, ao entardecer, e sorria para ele.

O segundo fósforo apagou-se. O irmão do falecido acendeu um terceiro. Ele aproximou-se e olhou de novo. Então, cambaleou e soltou um grito, que repercutiu pelas salas vazias e ressoou com ecos que se prolongaram através das extensas passagens de pedra no andar inferior.

A cabeça de Gilbert estava voltada para trás e o queixo apontado para o teto. Na garganta, o médico notou manchas lívidas bastante distintas. Marcas de pequenos dedos se destacavam indicando pertencerem à mãozinha de uma mulher.

* * * * *

O curioso de toda essa história, e talvez o que chame mais atenção, é que ninguém jamais conseguiu pôr os olhos naquelas manchas que provariam o crime de assassinato. Portanto, não houve escândalo, nem perseguição ao assassino, nem crime a ser desvendado. Elas desapareceram. Quando o médico viu o irmão novamente em plena luz do dia, e na presença de outros, sua garganta não apresentava qualquer marca. E a autópsia provou que a morte se deveu a causas naturais.

O mistério continua sem solução e assim permanecerá.

Agora, no local onde ficava a casa e seu maltratado jardim, passa uma nova estrada ao longo da qual belas e imponentes casas, vermelhas e brancas, se sobressaíam.

Qualquer que fosse o segredo que guardava, se é que havia algum, manteve em silêncio.

E Ned Dent tornou-se mórbido a ponto de, vez por outra, fazer caminhadas ao longo da nova e elegante rua durante o crepúsculo, tentando imaginar o que realmente teria acontecido.

Original English short story available here.
Conto original em inglês disponível aqui.

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